Dercilio
do violão ou Dercilio do banjo, como ficou conhecido, foi “uma figura que se
incorporou definitivamente à história musical bonjesuense” (1). Suas memórias (2),
escritas em 1979, ajudam a retratar o ambiente musical de sua época, e têm sua
origem assim explicada por Luciano Bastos:
No afã de preservar para os póstumos uma
fase do passado propus ao Dercilio uma gravação em que de viva voz perpetuasse
suas lembranças, os acontecimentos. Qual não foi minha surpresa quando meses
após recebi dele um caderno onde narra o que afirma ser “minha humilde
história” (1).
Infância e juventude
Dercilio
de Souza Pires (3) nasceu em Salgado (4), um pequeno povoado às margens
fluminenses do rio Itabapoana, que hoje existe apenas na memória e, talvez, em vestígios
arqueológicos que aguardam maiores pesquisas.
O
ano era 1902, e Salgado vinha perdendo sua gente, desde que o Porto da Limeira,
razão de sua existência, praticamente deixara de operar, em fins do século XIX
(5). O êxodo também chegou para a família de Dercilio, depois que seu pai,
Francisco Baptista Pires, carpinteiro, se acidentou quando trabalhava em uma
obra na próspera São José do Calçado (ES), o que fez com que a esposa,
Saturnina de Souza Pires, arrumasse a mudança e fosse cuidar do esposo.
Junto
com os sete filhos, sendo dois de colo, D. Saturnina saiu de Salgado, em 1910,
numa madrugada de verão, a pé, em direção a S. José do Calçado, carregando os
poucos pertences da família em uma carroça. Dercilio tinha, nessa época, oito
anos de idade, e se recorda de ter visto, no caminho, o lugarejo Ponte de José
Carlos (6), na outra margem do rio, e passado por Bom Jesus do Itabapoana (7).
A travessia do rio foi feita em uma ponte em ruínas (8), com a carroça tendo que ser conduzida por pessoas. A chegada a São José do Calçado, depois de muita caminhada, se deu no fim da tarde.
Em
virtude de outro acidente de trabalho, em uma obra perto do Córrego do Jacá, o
Sr. Francisco Baptista Pires acaba falecendo. Dercilio, com idade entre dez e onze anos, conta que já se “virava”, e dentre as
atividades que foi desenvolvendo na vida esteve a de marceneiro, tipógrafo,
pescador, aprendiz de alfaiate, padeiro e, é claro, tocador de violão.
Às margens do Itabapoana
No
mês de maio de 1926, aos 24 anos de idade, Dercilio e um irmão se mudam para Bom
Jesus do Itabapoana (RJ), onde haviam alugado do Sr. Jácomo Cavichini uma padaria que
estava fechada. Fabricando pão de sal, roscas de vários tipos, pão sovado,
entre outros, logo a padaria viu sua freguesia consolidada. Dercilio era o
vigia da massa, que começava a ser fabricada às seis horas da tarde e ficava em
descanso até três ou quatro horas da manhã.
E
era justamente nesse intervalo, enquanto sua massa “descansava”, que o jovem Dercilio
se envolvia com uma grande paixão: a música. Nesse tempo eram muito comuns as
serenatas, e os companheiros se reuniam no Bar do Sr. Carlos Hirsch (9), ponto
de referência na época para a juventude local.
Os
músicos eram o maestro Clovis Brandão (10), Antonio Carlos Paiva na clarineta,
Carlos Hirsch no violino, Levy Xavier no piston-surdina e o jovem Dercilio no
violão. Os cantores eram muitos, sendo os “firmes nas serenatas” o Amory Silveira,
o Ricardo Soares, o Jorge Teixeira (vulgo “Juvêncio”), o José Fraga e o Licínio
da Silva. Como toda serenata tem seus ouvintes, os apreciadores infalíveis
lembrados por Dercilio eram o Homero (vulgo “Tijolo”), o José Megre e o Amador
Pinheiro. Outro ouvinte sempre presente, o Dr. Otacílio de Aquino, além de
apreciador, também foi autor de um Fox Canção de muito sucesso na época, “Ano
Bom”, cantado por Jorge Juvencio.
Conjunto Jazz São Geraldo
Em
uma das costumeiras serenatas, Dercilio conta que, após a execução de uma
valsa, o maestro Clovis Brandão o convida para integrar o conjunto Jazz São
Geraldo, tocando banjo (11), já que ele entendia de variações de acordes, e o banjista da época só fazia a primeira, a segunda e a terceira, e apenas de alguns tons. Convite
aceito, Dercilio passou a integrar o grupo com muita alegria.
Na década de 1930, por vontade do irmão, o negócio da padaria é encerrado e os dois entram para o negócio de marcenaria. Dessa forma, Dercilio começa a trabalhar no fabrico de móveis, após ter passado alguns meses em Cachoeiro de Itapemirim (ES).
A turma da música, nessa época, já é outra, sendo composta pelo maestro Agnes de Aquino no saxofone, Levy Xavier no piston-surdina, Jader Silva no sax, tendo como cantores, Delbio Fragoso, Salim Elias, Amelio Medina e Diogenes Martins.
Em
1937, mais um acidente de trabalho marca a vida da família. O irmão perde dois
dedos da mão direita em uma das máquinas e passa a fazer tratamento. Sem poder
continuar com o negócio, Dercilio vai para o Rio de Janeiro em busca de
oportunidade de emprego. Passa a trabalhar como lustrador em uma fábrica
de cama, adquirindo aí sua carteira profissional de trabalho.
Depois
de um tempo trabalhando no Rio de Janeiro, Dercilio retorna a Bom Jesus do
Itabapoana, trazendo consigo um novo companheiro, o banjo-tenor...
No campo da música, novas mudanças na cidade (12). Logo o banjista se reintegrou ao Jazz São Geraldo, que estava agora sob a direção do Maestro Levy Xavier (13), no piston, junto com Bininho Xavier no trombone, Chiquito do Carmo no violino e Pedro Lino no piano, além de baterista e pandeirista.
O conjunto
tocava no Cine Teatro São Geraldo, na Bom Jesus capixaba “terça, quinta,
sábado e domingo para a moçada dançar antes da sessão cinematográfica das sete às oito horas da noite”. Isso quando não havia noite de baile no salão do cinema. O
conjunto também tocou, na Bom Jesus fluminense, no Palace-Club (14), no Aero
Clube, na Rádio Bom Jesus e no Ginásio Rio Branco. Além disso, o Jazz S.
Geraldo era convidado para fora, “pelos quatro lados de Bom Jesus” (15).
Quatro bailes marcantes na memória:
Baile da emancipação do município, no dia 1º de janeiro de 1939, realizado, segundo Dercilio, na antiga casa Firmo, na Praça Governador Portela (16).
Inauguração
do Bar Itamaraty (17), de propriedade do Sr. Leovergilio Nunes da Silva,
conhecido como “Dodô Elias”. Dercilio, no banjo, tocava com um quinteto famoso composto
dos três irmãos Xavier, Levy Xavier no piston, Homero no clarinete, Bininho no
trombone, além de Manoelzinho Reis na bateria.
Baile
em benefício à reabertura do Hospital São Vicente de Paulo, realizado no
Ginásio Rio Branco, em 1939. O baile foi organizado pela Diretoria do Centro
Popular Pró-Melhoramentos de Bom Jesus, cujo presidente, à época, era Olívio
Bastos.
Bailes
de Micareme no Aero Clube (18), em 1952, ao som do Trio composto por Dercilio,
no banjo, Christóvão Pires na bateria e Pedro Augusto (vulgo “Macuco”) no
pandeiro.
Carnavais, festas juninas e festas populares
Dessa época em diante, Dercílio conta não ter tocado mais em bailes sociais, a não ser
em carnavais fora de Bom Jesus. Com a carteira profissional da Ordem dos
Músicos, passou a tocar também em bailes de cabaré, nunca deixando de
frequentar, é claro, as serenatas.
Entre
1952 e 1970, mesmo com Agnes de Aquino (19) não morando mais em Bom Jesus, este
se fazia presente na cidade em toda Festa de Agosto, com seu sax. Junto com Dercilio no
banjo e Jader Silva, também no saxofone, costumavam formar um trio.
A
partir de 1968, Delcidio passa a tocar sem compromisso profissional, com seus
companheiros acordeonistas Elóis Teixeira dos Santos e Romeu T. Sobrinho,
fazendo show em almoço de recepções e festas juninas, em locais como o Colégio
Rio Branco, o Clube do Ordem e Progresso e o Olímpico Futebol Clube.
No
período em escreve suas memórias, em 1979, Dercílio toca com um companheiro de
sopro, Manuel Portugal, com sua flauta de seis furos, e continua a animar festas
juninas e outros festejos. Luciano Bastos destaca sua eterna juventude ao
contar que no carnaval daquele ano, após tratamento médico, com seus 77 anos,
Dercilio saiu pelas ruas da cidade, em
sua bicicleta, batendo um tambor. Em sua passagem com rosto feliz e alegre
saudava e brincava sozinho o carnaval. Confesso que me emocionei. Que mensagem
maravilhosa você estava enviando, meu bom amigo Dercilio, na simplicidade
daquele desfile solitário. Nenhum livro ou palavras falariam melhor (1).
Seus
90 anos foram festejados ao lado da esposa, Sra. Aleixina Furtado de Souza,
familiares e amigos, em sua residência em Bom Jesus do Norte (20)
Dercilio
deixou um legado de encantamento aos que o ouviram tocar e, nas palavras do
próprio músico, deixou registradas as recordações dos “velhos tempos em que
levei muitos músicos embaixo das minhas palhetadas e acordes” (2).
Em sua homenagem foi criada, em Bom Jesus do Norte (ES), a "Banda Musical Dercilio Pires" (21).
Paula Aparecida Martins Borges Bastos
Notas e referências
(1)
Dercilio do Violão, por Luciano Bastos. O
Norte Fluminense. Bom Jesus do Itabapoana, 12/08/1979.
(2)
“Nas margens do Itabapoana: minha humilde história” é o título das memórias de Dercilio do Banjo, de 1979. O original, manuscrito,
integra o acervo do Espaço Cultural Luciano Bastos. Grande parte das
informações constantes no presente texto tem por base essa autobiografia.
(3)
Segundo o músico, seu nome correto seria Dercilio de Souza Pires, porém, de
forma inadvertida, na segunda via do registro passou a constar Dercilio
Baptista de Souza.
(4)
Dercilio indica que Salgado ficava no lado fluminense, em torno de dois quilômetros de
distância de Santo Eduardo (atual distrito de Campos dos Goytacazes) e Ponte do
Itabapoana (atual distrito de Mimoso do Sul), estando localizado ao longo da
estrada que ligava essas duas localidades ao povoado de Limeira, também no lado
fluminense. Salgado era composto de um grupo de casas dos dois lados da estrada,
bem como uma pequena Capela, no alto de um discreto morro.
(5)
O transporte ferroviário, ao ser implantado na região, fez com que o transporte
fluvial fosse decaindo economicamente, o que teve forte repercussão negativa nos
povoados que gravitavam em torno do Porto da Limeira. Saiba mais: http://gerson-franca.blogspot.com/2010/10/curiosidade-limeira-e-os-correios.html .
(6)
Atual José Carlos, distrito de Apiacá (ES).
(7) O encantamento infantil com a primeira visão da fluminense Bom Jesus, levou Delcídio a afirmar ter continuado a viagem “levando no meu coração Bom Jesus do Itabapoana”. Veja mais sobre essa parte da viagem no subtítulo “Memórias dos primeiros anos do século XX” da matéria a seguir : https://espacoculturallucianobastos.blogspot.com/2021/05/pracas-amaral-peixoto-e-governador.html .
(8)
Segundo Dercílio, a ponte ficava próximo a uma fazenda da família Matias e, na
época em que escreveu suas memórias, a ponte já não existia mais.
(9) A Confeitaria Hirsch, situada na atual Praça Governador Portela, era bastante frequentada nas décadas
de 1920 e 1930 e, segundo notícias de jornais da época, possuía uma carta de vinhos
variados, além de sorvetes, refrescos, doces e outras iguarias. Carlos Hirsch, além de proprietário, participava dos eventos musicais
com seu violino, como narra Dercílio.
(10)
O maestro Clovis Brandão foi o autor da composição musical “Ordem e Progresso”,
com letra de Otacílio de Aquino. A marcha, composta para o Ordem e Progresso
Futebol Clube, foi executada pelo conjunto Jazz, sob direção do maestro compositor,
em festividade no Cine Teatro São Geraldo em 08/01/1934, durante posse da nova
diretoria do Clube desportivo. Fonte: Correio da Manhã, Rio de Janeiro, 12/01/1934. Disponível aqui
(11)
Banjo-tenor: Banjo de quatro cordas, com pescoço curto, normalmente tocado com
uma palheta, mas também pode ser dedilhado com os dedos. Foi um instrumento
muito popular no Tango e em outras bandas de dança das décadas de 1920 e 1930,
sendo atualmente mais comum no jazz originário de Nova Orleans. Saiba mais aqui .
(12)
Segundo Dercilio, os maestros e pianistas Clovis Brandão e Carlos Paiva já não
moravam em Bom Jesus do Itabapoana nessa época.
(13) Para saber mais sobre a biografia e carreira musical de Levy Xavier e sua família: https://onortefluminense.blogspot.com/2018/06/hoje-o-maestro-levy-xavier-completaria.html .
(14)
Fundado por Salim Tannus, o Palace-Club era um salão de bailes localizado na
Praça Governador Portela, porém não teve vida longa, indica Dercilio.
(15) O músico faz menção, aqui, aos quatro distritos que compunham o município de Bom Jesus do Itabapoana, na época: Bom Jesus do Itabapoana - sede, Calheiros, Rosal e Liberdade.
(16) As festividades de instalação do município ocorreram ao longo de todo o dia 1º, na Praça Governador Portela e o evento contou com a presença de políticos locais e da região, além de grande público. A solenidade oficial ocorreu no prédio onde hoje é o Big Hotel. Segundo Francisco Camargo Teixeira, a Lyra dos Conspiradores, da cidade de Macaé, também se fez presente. A Casa Firmo, onde Dercílio indica haver ocorrido o baile da festa, foi posteriormente demolida, tendo sido construído no local o prédio do Cine-Teatro Monte Líbano, hoje com tombamento pelo INEPAC. Saiba mais em: Bom Jesus do Itabapoana, de Francisco Camargo Teixeira, 3ª ed. ampliada por Georgina Mello Teixeira, 2005; e em: http://onortefluminense.blogspot.com/2015/12/os-76-anos-de-nossa-2-emancipacao.html .
(17)
Localizado na esquina da Rua Roberto Silveira com a Travessa R. T. José
Teixeira, indica o músico.
(18)
Segundo Dercilio, com a promoção de bailes no salão do Monte Líbano, organizado
pela Rádio Bom Jesus, a “moçada do Aero”, resolveu na última hora “separar o
bloco e fazer os Bailes do Aero Clube”, solicitando ao seu Diretor, Sr. Salim
Tannus, sua realização. Foram duas noites, conta o músico, surpreendentes, em
que a “moçada vibrou de alegria”.
(19) Agnes de Aquino fez carreira musical, tendo gravado em disco (78 RPM) a música “Caminho Errado”, junto com Carlos Magno, em 1956. No disco “As Valsas de Ontem e a Banda Campesina de Nova Friburgo”, gravou a música “Vitória Régia”, sem data. Fonte: IMMub, Catálogo online da música brasileira. Conferir aqui , aqui e aqui .
(20) Dercilio Batista Pires. O Norte Fluminense, Bom Jesus do Itabapoana, 27/09/1992.
(21) A Banda de Música Dercilio Pires consta no cadastro de Bandas da Funarte: https://sistemas.funarte.gov.br/consultaBandas/listagem.php?uf=ES Acesso em 16/02/2022
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