A forma como se cultua e reverencia os mortos reflete os aspectos culturais de um povo. Os rituais dos puris e coroados, habitantes comuns nas paragens do Vale do Itabapoana em séculos passados, seguiam hábitos e costumes distintos daqueles que foram instalados na região pelos colonizadores que aqui chegaram no século XIX. Com estes últimos se deu início ao ritual de sepultamento dentro ou próximo de capelas e igrejas, sendo posteriormente esse hábito sido substituído pelo enterro em cemitérios.
Os primeiros habitantes do povoamento de Bom Jesus foram sepultados junto à Capela de Santa Rita, construída em 1853, no denominado Alto de Santa Rita (atual Praça Amaral Peixoto).
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Alto de Santa Rita (seta amarela): local onde os primeiros habitantes de Bom Jesus foram sepultados. |
Na última década do século XIX, quando deu-se a primeira emancipação de Bom Jesus (1890-1892), constam nas atas da Intendência, segundo Luciano Augusto Bastos, a existência de quatro cemitérios no então 1º Distrito: um público (localizado no povoado, atual Bom Jesus) e três particulares (localizados nos atuais Carabuçu, Pirapetinga e Serra do Tardin):
O Cemitério Público do povoado estava localizado em Bom Jesus, tendo por Inspetor, em 1890, o Sr. Antonio José dos Santos Lisboa, que, ao assumir o cargo, prestou juramento ante a municipalidade. Em 1892 o cargo de Inspetor passou a ser ocupado pelo sr Rodozino Rodrigues da Silva.
Em Carabuçu, o cemitério particular São João Batista, estava localizado na Serra da Liberdade, na fazenda pertencente aos herdeiros do então falecido Jacob Furtado Mendonça. Nos anos de 1890 e 1891, foram Inspetores do Cemitério o sr. João Climaco Barroso e o sr. Antonio Vicente Pereira, respectivamente.
Em Pirapetinga, o cemitério particular estava localizado na Fazenda do sr. João Pedro Lemgruber, sendo este o próprio Inspetor do cemitério.
Na Serra do Tardin, o cemitério particular tinha por Inspetor o sr. Francisco Tardin.
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Antigo Cemitério na Serra do Tardin. Foto: Blog Jornal O Norte Fluminense, 2016 |
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Antigo Cemitério na Serra do Tardin. Foto: Blog Jornal O Norte Fluminense, 2016
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O 2º Distrito da época da Primeira Intendência, Santo Antonio do Itabapoana (atual Calheiros), possuía cemitério com inspetor específico para o local.
Os cemitérios refletem seu tempo histórico, como atesta o enterro do Padre João Mendes Ribeiro: atuando na paróquia de Santo Antonio do Itabapoana na década de 1860, por ser negro, não foi enterrado no cemitério local, mas sim em área de mato próxima ao cemitério. No ano de 2007, a população procedeu um desagravo ao ocorrido, e os restos mortais do Padre foram trasladados para a Capela de Santo Antonio, em Calheiros.
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Antigo Túmulo do Padre João Mendes. Calheiros. Foto: Jornal O Norte Fluminense (2007) |
Em Bom Jesus do Itabapoana, sede, o primeiro cemitério que se tem notícia existiu no Alto de Santa Rita. Quem nos dá informação desse cemitério é Romeu Couto, em crônica intitulada "O cemitério no Alto de Santa Rita", publicada originalmente no jornal A Voz do Povo:
O Alto de Santa Rita, por exemplo, já foi um silencioso e melancólico cemitério. O seu terreno, agora, profanado por nossos pés pecadores, já serviu de abrigo a centenas de corpos sem vida. Ainda hoje, quem se der ao trabalho de revolver algumas camadas de terras daquele local, poderá inteirar-se de sua santa utilidade em tempos idos. Tíbias, crânios e costelas encontradas em tais pesquisas, constituirão testemunho desta minha afirmativa.
Nesse cemitério existiam dois gigantescos eucaliptos, tendo sido um cortado a golpes de machado, enquanto outro ainda deslumbrava por seu porte quem por ali passava na década de 1930.
Quando terá sido desativado esse cemitério não podemos afirmar, mas segundo Padre Mello, em 1891 já existia um cemitério no Monte Calvário, estando este, no ano de 1899, um verdadeiro "capoeirão".
Mediante tal situação de abandono, relata o Padre ter assumido para a Paróquia a responsabilidade e cuidado pelo cemitério, com apoio de várias pessoas da comunidade.
O cuidado e manutenção da área parece continuar a ser um problema em 1907, quando em época de carnaval, o jornal Itabapoana, em tom de troça, apresenta o seguinte "folião":
Um misérrimo esqueleto n'uma grotesca fantasia de capim-gordura e erva de Santa-Maria, vem nos pedir que reclamemos dos poderes competentes para o estado em que ele se acha, sem ter quem olhe para a sua vergonha.
Reconhecemos no folião o Cemitério Novo.
Em 1930 já existia um outro "Cemitério Novo" (o atual cemitério de Bom Jesus), em oposição ao ainda existente "Cemitério Velho" (no Monte Calvário), o que gerou algumas críticas e desagrados, como podemos observar em artigo assinado por Carvalho Junior no jornal A Voz do Povo:
O cemitério velho é triste no seu abandono. É um cemitério que se aposenta; seu terreno sagrado, dentro em breve, tornar-se-á área construtiva. Em um futuro bem próximo, ali teremos novas praças com seus jardins, e ruas com casas a grimpar pelas encostas do Monte Calvario. Por sobre os túmulos dos que ali repousam, pisarão animais, rolarão veículos e passarão transeuntes na indiferença egoística de sua felicidade. É uma ironia bem triste à paz da morte e ao sono calmo da tumba!
Em 1935 os dois cemitérios, velho e novo, ainda coexistem, como podemos depreender de artigo de Romeu Couto, publicado originalmente no jornal A Voz do Povo, intitulado "Cemitério Novo", apontando as diferenças entre o cemitério "de cá" e o "de lá":
E no dia da festa, dos que deixaram de viver, no dia de finados? A necrópole de cá é toda movimento. As flores, onde se encontra, até aí, a diferença da sorte, deixam um ar impregnado de um odor cheio de doce tristeza, tristeza essa mais comovente por causa da luz cadavérica desprendida das mil-e-uma velas piedosamente acesas. A gente, enlevado, ouve até o cantochão. Lá, não há festa. Os poucos moradores não se dão ao luxo de tal solenidade. É por isso tudo que os defuntos gostam mais de morar do lado de cá. Aqui há conforto, visitas e outras cousas que constituem a felicidade do homem morto.
Hoje, no século XXI, os resquícios dos cemitérios antigos do Alto de Santa Rita e do Monte Calvário encontram-se imersos sob a terra, e em documentos e imagens que iluminam nossas memórias sobre tempos e pessoas que aqui permanecerão para sempre.
Claudia Martins Borges Bastos do Carmo
Paula Aparecida Martins Borges Bastos
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BIBLIOGRAFIA
BASTOS, LUCIANO AUGUSTO. De Município a Distrito: Primeira Emancipação
de Bom Jesus do Itabapoana (1890-1892). Coleção Histórias de Bom Jesus v.1: Bom
Jesus do Itabapoana, 2008. 115p.
COUTO, ROMEU. “Primavera do poeta” e mais 89 crônicas de
Romeu Couto. Editadas por Delton de Mattos, Rio de Janeiro: Textus, 2004.
PE. JOÃO MENDES RIBEIRO, O PADRE NEGRO. Jornal O Norte Fluminense, Bom Jesus do Itabapoana, 06 jul 2007.
CARVALHO JUNIOR. O Cemiterio Velho. In: Jornal A Voz do Povo, Bom Jesus do Itabapoana, 01 nov 1930.
PADRE MELLO. O Cemiterio Velho. In: Jornal A Voz do Povo, Bom Jesus do Itabapoana, 22 nov 1930.
BASTOS, LUCIANO AUGUSTO. Bom Jesus do Itabapoana nas folhas do Itabapoana em 1907: o primeiro jornal. Coleção Histórias de Bom Jesus, v. 3: Bom Jesus do Itabapoana, 2010. 300p.
Atualização: 09/01/2022