Paula Borges Bastos
As ruas adormecidas da pequena cidade parecem esquecidas pelas pessoas. O mês é dezembro ou janeiro. O calor faz as casas abrirem suas janelas para que o ar circule livremente trazendo a fresca da madrugada. A lua ilumina timidamente o céu estrelado. Quebrando a monotonia da noite, um grupo de homens caminha silenciosamente, em passos leves, como se a paisagem os acolhesse em seu anonimato. Ao chegar frente a uma casa de dois andares, o que parece ser o chefe do grupo, um senhor de aspecto maduro e olhar vivaz, faz um sinal. Todos param, perfilados e a postos. O chefe toma de um apito, que traz pendurado ao peito, e emite um silvo longo e estridente. A noite desperta, encantada. Vozes ancestrais, em cantilena, devolvem ao mundo uma história de reis, um casal em fuga, uma criança salvadora e a eterna batalha entre o bem e o mal. Sanfona e tambores se distinguem entre os sons que separam as estrofes, em um ritmo ágil e forte.
Dentro da casa todos os olhos já estão
abertos. O pai levanta e se prepara para ir ao encontro da calçada, agora
iluminada pelas luzes acesas na varanda. A mãe se dirige à cozinha, sem nenhum
espanto, com passos lentos, mas decididos de ação. O cachorro acompanha a dona,
sem hesitação. No alto uma menina viaja pela fresta da janela, inebriada pela
linguagem inacessível que traz, através da melodia, a intuição de um mundo
inimaginável e ao mesmo tempo tão familiar. Os irmãos, todos de pé, acompanham
em expectativa e risos o desenrolar da noite. A casa, honrada, recebe uma
jornada da Folia de Reis.
O grupo, masculino, não é grande. A
vestimenta lembraria soldados em desfile, não fossem as cores fortes e
brilhantes, tecido lembrando cetim, e chapéus cuidadosamente enfeitados em
prateado e dourado. Um deles carrega um estandarte com imagens religiosas, muitas
fitas coloridas e algumas mensagens. A música continua, alternando vozes e
instrumentos, em ritmo uniforme, eterno, secular e sacro. Todos que estão ali
são pessoas simples, alguns da mesma família, outros vizinhos ou conhecidos.
Trabalhadores no dia-a-dia da vida cotidiana, que se transformam no fim de ano
em arautos do eterno recomeço. Há uma dignidade encarnada, que não se
personifica nem se individualiza. É o sentido da comunhão, do anonimato
construtivo, do comunismo primitivo, que une esses homens na manifestação que
considero mais característica de nossa cultura local.
O pai acompanha, muito ereto e compenetrado,
todo o desenrolar da história trazida à nossa casa. Por fim o apito soa
novamente, indicando uma pausa. Meu pai diz algumas palavras de agradecimento
pela honraria, e segura, como reza a tradição, o estandarte símbolo de devoção.
Todos são convidados a entrar na sala. Sobre a mesinha do centro já se
encontram biscoitos e refrigerante, que minha mãe depositou tranquila e
placidamente enquanto as vozes dissonantes do lado de fora inundavam nossas
almas. Conversas que eu não conseguia ouvir continuavam na sala até que todos
comessem e bebessem. Por fim, meu pai agradecia novamente, fazia uma doação em
dinheiro juntamente com uma garrafa de vinho, e todos se dirigiam, em fila,
para o lado de fora da casa.
A música retornava, e dessa vez ganhava
destaque o palhaço, que cantava e se distinguia do grupo em vestimenta e cor,
além de uma máscara muito grande, com cara de animal, que encobria todo seu
rosto. Trazia à mão um cajado que rodava e saltitava junto com seu corpo
enquanto os tambores ressoavam fortes entre os espaços de sua história. Este
palhaço tem um quê de herança dos malignos indígenas, um tanto mais travessos
que malvados, trazendo para as coisas e pessoas o risível de nossa humanidade.
É natural que os reis magos não poderiam manter-se intactos em nossa cultura mestiça. É na folia que se traduz nossa miscigenação, nossa leitura de mundo, nossas cores e nossa bandeira. Encarnação de nosso modernismo arcaico absorvido pela antropofagia, as raízes europeias sofrem uma visão tupiniquim embalada a sons africanos. Construimos, em nosso cotidiano, um mundo árido e de sol forte, em cujo interior de nossas almas habita, vasto e inominável, um grande sertão pelas veredas da vida que nos compõe.
ORIGEM E FORMAÇÃO DAS FOLIAS
Texto extraído do jornal O Norte Fluminense, de 25 de dezembro de 1985
As Folias de Reis são de origem portuguesa,
possivelmente ligadas aos grupos de violeiros e repentistas que percorriam
igrejas e aldeias de Portugal para festejar o Natal. Não tem semelhança com os
pastoris comuns no Nordeste, sendo manifestação folclórica mais ocorrente na
região Sudeste brasileira.
Sua
organização parece sugerir reminiscências de formação militar, quer pelo
uniforme usado pelos foliões em alguns municípios, lembrando bastante fardamentos,
quer pelo nome de alferes dado ao Porta-Bandeira. Além deste, são figuras fixas
em uma folia o mestre que tira os versos e comanda a cantoria, e os palhaços. O
número de foliões é variável. Quanto aos instrumentos, modificam-se de região
para região, sendo básicos os bumbos, caixas, sanfona, triângulo, chocalho e
pandeiro. No Norte Fluminense podemos testemunhar a presença de instrumento de
corda, cavaquinho e violões no instrumental de folias e até de flautas, estas
feitas de bambu, de som muito límpido.
APRESENTAÇÃO DA JORNADA
Chama-se jornada
a apresentação de folias de Reis em casas de famílias. Como pertencer a
uma folia é devoção ligada à intenção religiosa de louvar o Deus-Menino, basta
que se solicite a presença da folia para que ela compareça. Espera-se que os
donos da casa ofereçam aos foliões comida e bebidas, dádivas, em dinheiro ou
animais domésticos, que posteriormente são vendidos, revertendo o preço para a
bandeira. Mas mesmo no caso de não poderem
contar com sua presença, muitas vezes a jornada é uma visita de
improviso.
Uma
jornada completa, segundo a tradição fluminense, comporta a marcha – chegada da
folia e pedido para entrar e cantar na casa visitada. Busca. Encontro e
Adoração cantadas em versos tradicionais pelo mestre em coro de todos os
foliões; Ceia, cantos junto à mesa de refeição oferecida pelos devotos, cantada
geralmente em versos improvisados para a circunstância.
Agradecimento
e despedida, composta de versos também improvisados, em atenção a todos os
presentes, principalmente os donos da casa, seus familiares e demais pessoas
que fazem ofertas à Bandeira.
As
dádivas em dinheiro costumam ser presas à própria Bandeira, oferecendo-se,
ainda, comumente, imagens, medalhas e flores para orná-las. As Bandeiras de
Folia são criadas pelos próprios foliões ou pessoas de sua família, sendo feita
de fitas coloridas, flores de papel, espelhos e outros ornatos brilhantes.
Também manualmente produzidos são muitas vezes os instrumentos da folia,
caixas, pandeiros e chocalhos, são ainda confeccionados pelos foliões,
especialmente em Cantagalo, Duas Barras, Pádua e Miracema.
PALHAÇO
E TRIPE
Algumas Folias trazem mulheres entre seus componentes.
Entoando os versos com os demais membros do grupo, elas são encarregadas de
produzir a nota final, aguda, no encerramento de cada verso , um descante
emitido uma oitava acima da última frase cantada: a isso chama-se “tripe”. Essa
função cabe, em outras folias, só aos meninos.
Os palhaços representam os soldados de Herodes que,
cumprindo ordens desse rei, procuravam o Menino Jesus para matá-lo.
Inteiramente coberto de fitas e tiras de pano, com uma cruz aplicada às costas,
os palhaços de folia tem o rosto coberto com máscaras de couro. No interior do
Estado são preferidas as máscaras de couro de animais silvesstres (preguiça ou
quati) ou de cabrito.
Considerados
indignos de comparecerem perante o Menino Jesus, os palhaços prostam-se de
rosto no chão diante do presépio, para manifestar seus arrependimentos. Ser
palhaço é promessa que na maioria dos Municípios fluminenses compromete o
penitente por sete anos. A apresentação dos palhaços é feita no final da
jornada, com música especial chamada “Chula”.
Os palhaços
improvisam os versos que cantam e dançam, executando piruetas dentro de um
círculo formado pelos músicos. Costumam receber moedas, que são atiradas ao
chão pelos presentes.