sexta-feira, 4 de fevereiro de 2022

Memórias do século XX: Dercilio do Banjo, uma vida musical

 

Dercilio do Banjo e Luiz na clarineta, com grupo musical
em apresentação no Colégio Rio Branco, em 21/10/1983


Dercilio do violão ou Dercilio do banjo, como ficou conhecido, foi “uma figura que se incorporou definitivamente à história musical bonjesuense” (1). Suas memórias (2), escritas em 1979, ajudam a retratar o ambiente musical de sua época, e têm sua origem assim explicada por Luciano Bastos:

No afã de preservar para os póstumos uma fase do passado propus ao Dercilio uma gravação em que de viva voz perpetuasse suas lembranças, os acontecimentos. Qual não foi minha surpresa quando meses após recebi dele um caderno onde narra o que afirma ser “minha humilde história” (1).

Infância e juventude

Dercilio de Souza Pires (3) nasceu em Salgado (4), um pequeno povoado às margens fluminenses do rio Itabapoana, que hoje existe apenas na memória e, talvez, em vestígios arqueológicos que aguardam maiores pesquisas.

O ano era 1902, e Salgado vinha perdendo sua gente, desde que o Porto da Limeira, razão de sua existência, praticamente deixara de operar, em fins do século XIX (5). O êxodo também chegou para a família de Dercilio, depois que seu pai, Francisco Baptista Pires, carpinteiro, se acidentou quando trabalhava em uma obra na próspera São José do Calçado (ES), o que fez com que a esposa, Saturnina de Souza Pires, arrumasse a mudança e fosse cuidar do esposo.

Junto com os sete filhos, sendo dois de colo, D. Saturnina saiu de Salgado, em 1910, numa madrugada de verão, a pé, em direção a S. José do Calçado, carregando os poucos pertences da família em uma carroça. Dercilio tinha, nessa época, oito anos de idade, e se recorda de ter visto, no caminho, o lugarejo Ponte de José Carlos (6), na outra margem do rio, e passado por Bom Jesus do Itabapoana (7).

A travessia do rio foi feita em uma ponte em ruínas (8), com a carroça tendo que ser conduzida por pessoas. A chegada a São José do Calçado, depois de muita caminhada, se deu no fim da tarde.

Em virtude de outro acidente de trabalho, em uma obra perto do Córrego do Jacá, o Sr. Francisco Baptista Pires acaba falecendo. Dercilio, com idade entre dez e onze anos, conta que já se “virava”, e dentre as atividades que foi desenvolvendo na vida esteve a de marceneiro, tipógrafo, pescador, aprendiz de alfaiate, padeiro e, é claro, tocador de violão.

Às margens do Itabapoana

No mês de maio de 1926, aos 24 anos de idade, Dercilio e um irmão se mudam para Bom Jesus do Itabapoana (RJ), onde haviam alugado do Sr. Jácomo Cavichini uma padaria que estava fechada. Fabricando pão de sal, roscas de vários tipos, pão sovado, entre outros, logo a padaria viu sua freguesia consolidada. Dercilio era o vigia da massa, que começava a ser fabricada às seis horas da tarde e ficava em descanso até três ou quatro horas da manhã.

E era justamente nesse intervalo, enquanto sua massa “descansava”, que o jovem Dercilio se envolvia com uma grande paixão: a música. Nesse tempo eram muito comuns as serenatas, e os companheiros se reuniam no Bar do Sr. Carlos Hirsch (9), ponto de referência na época para a juventude local.

Bom Jesus - Jornal, 1928

Os músicos eram o maestro Clovis Brandão (10), Antonio Carlos Paiva na clarineta, Carlos Hirsch no violino, Levy Xavier no piston-surdina e o jovem Dercilio no violão. Os cantores eram muitos, sendo os “firmes nas serenatas” o Amory Silveira, o Ricardo Soares, o Jorge Teixeira (vulgo “Juvêncio”), o José Fraga e o Licínio da Silva. Como toda serenata tem seus ouvintes, os apreciadores infalíveis lembrados por Dercilio eram o Homero (vulgo “Tijolo”), o José Megre e o Amador Pinheiro. Outro ouvinte sempre presente, o Dr. Otacílio de Aquino, além de apreciador, também foi autor de um Fox Canção de muito sucesso na época, “Ano Bom”, cantado por Jorge Juvencio.

Conjunto Jazz São Geraldo

Em uma das costumeiras serenatas, Dercilio conta que, após a execução de uma valsa, o maestro Clovis Brandão o convida para integrar o conjunto Jazz São Geraldo, tocando banjo (11), já que ele entendia de variações de acordes, e o banjista da época só fazia a primeira, a segunda e a terceira, e apenas de alguns tons. Convite aceito, Dercilio passou a integrar o grupo com muita alegria.

O Jazz , sob a batuta do maestro Clovis Brandão, animando festividades locais
O Momento, 1932

Na década de 1930, por vontade do irmão, o negócio da padaria é encerrado e os dois entram para o negócio de marcenaria. Dessa forma, Dercilio começa a trabalhar no fabrico de móveis, após ter passado alguns meses em Cachoeiro de Itapemirim (ES).

A turma da música, nessa época, já é outra, sendo composta pelo maestro Agnes de Aquino no saxofone, Levy Xavier no piston-surdina, Jader Silva no sax, tendo como cantores, Delbio Fragoso, Salim Elias, Amelio Medina e Diogenes Martins.

Em 1937, mais um acidente de trabalho marca a vida da família. O irmão perde dois dedos da mão direita em uma das máquinas e passa a fazer tratamento. Sem poder continuar com o negócio, Dercilio vai para o Rio de Janeiro em busca de oportunidade de emprego. Passa a trabalhar como lustrador em uma fábrica de cama, adquirindo aí sua carteira profissional de trabalho.

Depois de um tempo trabalhando no Rio de Janeiro, Dercilio retorna a Bom Jesus do Itabapoana, trazendo consigo um novo companheiro, o banjo-tenor...

No campo da música, novas mudanças na cidade (12). Logo o banjista se reintegrou ao Jazz São Geraldo, que estava agora sob a direção do Maestro Levy Xavier (13), no piston, junto com Bininho Xavier no trombone, Chiquito do Carmo no violino e Pedro Lino no piano, além de baterista e pandeirista.

O conjunto tocava no Cine Teatro São Geraldo, na Bom Jesus capixaba “terça, quinta, sábado e domingo para a moçada dançar antes da sessão cinematográfica das sete às oito horas da noite”. Isso quando não havia noite de baile no salão do cinema. O conjunto também tocou, na Bom Jesus fluminense, no Palace-Club (14), no Aero Clube, na Rádio Bom Jesus e no Ginásio Rio Branco. Além disso, o Jazz S. Geraldo era convidado para fora, “pelos quatro lados de Bom Jesus” (15).

Quatro bailes marcantes na memória:

Baile da emancipação do município, no dia 1º de janeiro de 1939, realizado, segundo Dercilio, na antiga casa Firmo, na Praça Governador Portela (16).

Inauguração do Bar Itamaraty (17), de propriedade do Sr. Leovergilio Nunes da Silva, conhecido como “Dodô Elias”. Dercilio, no banjo, tocava com um quinteto famoso composto dos três irmãos Xavier, Levy Xavier no piston, Homero no clarinete, Bininho no trombone, além de Manoelzinho Reis na bateria.

O Boletim, 1939

Baile em benefício à reabertura do Hospital São Vicente de Paulo, realizado no Ginásio Rio Branco, em 1939. O baile foi organizado pela Diretoria do Centro Popular Pró-Melhoramentos de Bom Jesus, cujo presidente, à época, era Olívio Bastos.

Bailes de Micareme no Aero Clube (18), em 1952, ao som do Trio composto por Dercilio, no banjo, Christóvão Pires na bateria e Pedro Augusto (vulgo “Macuco”) no pandeiro.

Carnavais, festas juninas e festas populares

Dessa época em diante, Dercílio conta não ter tocado mais em bailes sociais, a não ser em carnavais fora de Bom Jesus. Com a carteira profissional da Ordem dos Músicos, passou a tocar também em bailes de cabaré, nunca deixando de frequentar, é claro, as serenatas.

Entre 1952 e 1970, mesmo com Agnes de Aquino (19) não morando mais em Bom Jesus, este se fazia presente na cidade em toda Festa de Agosto, com seu sax. Junto com Dercilio no banjo e Jader Silva, também no saxofone, costumavam formar um trio.

A partir de 1968, Delcidio passa a tocar sem compromisso profissional, com seus companheiros acordeonistas Elóis Teixeira dos Santos e Romeu T. Sobrinho, fazendo show em almoço de recepções e festas juninas, em locais como o Colégio Rio Branco, o Clube do Ordem e Progresso e o Olímpico Futebol Clube.

O violeiro Dercilio é destaque no convite da Festa Junina
publicado no jornal do Colégio Rio Branco

No período em escreve suas memórias, em 1979, Dercílio toca com um companheiro de sopro, Manuel Portugal, com sua flauta de seis furos, e continua a animar festas juninas e outros festejos. Luciano Bastos destaca sua eterna juventude ao contar que no carnaval daquele ano, após tratamento médico, com seus 77 anos,

Dercilio saiu pelas ruas da cidade, em sua bicicleta, batendo um tambor. Em sua passagem com rosto feliz e alegre saudava e brincava sozinho o carnaval. Confesso que me emocionei. Que mensagem maravilhosa você estava enviando, meu bom amigo Dercilio, na simplicidade daquele desfile solitário. Nenhum livro ou palavras falariam melhor (1).

Dercilio do Banjo e Luciano Bastos, no Colégio Rio Branco, em 21/10/1983

Seus 90 anos foram festejados ao lado da esposa, Sra. Aleixina Furtado de Souza, familiares e amigos, em sua residência em Bom Jesus do Norte (20)

Dercilio deixou um legado de encantamento aos que o ouviram tocar e, nas palavras do próprio músico, deixou registradas as recordações dos “velhos tempos em que levei muitos músicos embaixo das minhas palhetadas e acordes” (2).

Em sua homenagem foi criada, em Bom Jesus do Norte (ES), a "Banda Musical Dercilio Pires" (21).

Paula Aparecida Martins Borges Bastos



Notas e referências

(1) Dercilio do Violão, por Luciano Bastos. O Norte Fluminense. Bom Jesus do Itabapoana, 12/08/1979.

(2) “Nas margens do Itabapoana: minha humilde história” é o título das memórias de Dercilio do Banjo, de 1979. O original, manuscrito, integra o acervo do Espaço Cultural Luciano Bastos. Grande parte das informações constantes no presente texto tem por base essa autobiografia.

(3) Segundo o músico, seu nome correto seria Dercilio de Souza Pires, porém, de forma inadvertida, na segunda via do registro passou a constar Dercilio Baptista de Souza.

(4) Dercilio indica que Salgado ficava no lado fluminense, em torno de dois quilômetros de distância de Santo Eduardo (atual distrito de Campos dos Goytacazes) e Ponte do Itabapoana (atual distrito de Mimoso do Sul), estando localizado ao longo da estrada que ligava essas duas localidades ao povoado de Limeira, também no lado fluminense. Salgado era composto de um grupo de casas dos dois lados da estrada, bem como uma pequena Capela, no alto de um discreto morro.

(5) O transporte ferroviário, ao ser implantado na região, fez com que o transporte fluvial fosse decaindo economicamente, o que teve forte repercussão negativa nos povoados que gravitavam em torno do Porto da Limeira. Saiba mais: http://gerson-franca.blogspot.com/2010/10/curiosidade-limeira-e-os-correios.html .

(6) Atual José Carlos, distrito de Apiacá (ES).

(7) O encantamento infantil com a primeira visão da fluminense Bom Jesus, levou Delcídio a afirmar ter continuado a viagem “levando no meu coração Bom Jesus do Itabapoana”. Veja mais sobre essa parte da viagem no subtítulo “Memórias dos primeiros anos do século XX” da matéria a seguir : https://espacoculturallucianobastos.blogspot.com/2021/05/pracas-amaral-peixoto-e-governador.html .

(8) Segundo Dercílio, a ponte ficava próximo a uma fazenda da família Matias e, na época em que escreveu suas memórias, a ponte já não existia mais.

(9) A Confeitaria Hirsch, situada na atual Praça Governador Portela, era bastante frequentada nas décadas de 1920 e 1930 e, segundo notícias de jornais da época, possuía uma carta de vinhos variados, além de sorvetes, refrescos, doces e outras iguarias. Carlos Hirsch, além de proprietário, participava dos eventos musicais com seu violino, como narra Dercílio.

(10) O maestro Clovis Brandão foi o autor da composição musical “Ordem e Progresso”, com letra de Otacílio de Aquino. A marcha, composta para o Ordem e Progresso Futebol Clube, foi executada pelo conjunto Jazz, sob direção do maestro compositor, em festividade no Cine Teatro São Geraldo em 08/01/1934, durante posse da nova diretoria do Clube desportivo. Fonte: Correio da Manhã, Rio de Janeiro, 12/01/1934. Disponível aqui

(11) Banjo-tenor: Banjo de quatro cordas, com pescoço curto, normalmente tocado com uma palheta, mas também pode ser dedilhado com os dedos. Foi um instrumento muito popular no Tango e em outras bandas de dança das décadas de 1920 e 1930, sendo atualmente mais comum no jazz originário de Nova Orleans. Saiba mais aqui .

(12) Segundo Dercilio, os maestros e pianistas Clovis Brandão e Carlos Paiva já não moravam em Bom Jesus do Itabapoana nessa época.

(13) Para saber mais sobre a biografia e carreira musical de Levy Xavier e sua família: https://onortefluminense.blogspot.com/2018/06/hoje-o-maestro-levy-xavier-completaria.html .

(14) Fundado por Salim Tannus, o Palace-Club era um salão de bailes localizado na Praça Governador Portela, porém não teve vida longa, indica Dercilio.

(15) O  músico faz menção, aqui, aos quatro distritos que compunham o município  de Bom Jesus do Itabapoana, na época: Bom Jesus do Itabapoana - sede, Calheiros, Rosal e Liberdade.

(16) As festividades de instalação do município ocorreram ao longo de todo o dia 1º, na Praça Governador Portela e o evento contou com a presença de políticos locais e da região, além de grande público.  A solenidade oficial ocorreu no prédio onde hoje é o Big Hotel. Segundo Francisco Camargo Teixeira, a Lyra dos Conspiradores, da cidade de Macaé, também se fez presente. A Casa Firmo, onde Dercílio indica haver ocorrido o baile da festa, foi posteriormente demolida, tendo sido construído no local o prédio do Cine-Teatro Monte Líbano, hoje com tombamento pelo INEPAC. Saiba mais em: Bom Jesus do Itabapoana, de Francisco Camargo Teixeira, 3ª ed. ampliada por Georgina Mello Teixeira, 2005; e em: http://onortefluminense.blogspot.com/2015/12/os-76-anos-de-nossa-2-emancipacao.html .

(17) Localizado na esquina da Rua Roberto Silveira com a Travessa R. T. José Teixeira, indica o músico.

(18) Segundo Dercilio, com a promoção de bailes no salão do Monte Líbano, organizado pela Rádio Bom Jesus, a “moçada do Aero”, resolveu na última hora “separar o bloco e fazer os Bailes do Aero Clube”, solicitando ao seu Diretor, Sr. Salim Tannus, sua realização. Foram duas noites, conta o músico, surpreendentes, em que a “moçada vibrou de alegria”.

(19) Agnes de Aquino fez carreira musical, tendo gravado em disco (78 RPM) a música “Caminho Errado”, junto com Carlos Magno, em 1956. No disco “As Valsas de Ontem e a Banda Campesina de Nova Friburgo”, gravou a música “Vitória Régia”, sem data. Fonte: IMMub, Catálogo online da música brasileira. Conferir aqui ,  aqui e aqui .

(20) Dercilio Batista Pires. O Norte Fluminense, Bom Jesus do Itabapoana, 27/09/1992.

(21) A Banda de Música Dercilio Pires consta no cadastro  de Bandas da Funarte: https://sistemas.funarte.gov.br/consultaBandas/listagem.php?uf=ES Acesso em 16/02/2022



Atualização em: 24/02/2022


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