domingo, 12 de julho de 2020

Memórias do século XX: "Tangará e Andorinha"

Tangará e Andorinha: apresentação em Iconha (ES), 1960. 
Acervo particular: Dejanira Pettersen.

"TODO ARTISTA TEM DE IR AONDE O POVO ESTÁ"

Dejanira Pettersen nasceu em Cambuci e hoje vive em Bom Jesus do Itabapoana, estando às margens de um tempo centenário. Não há como escutar suas histórias sem viajar no tempo e no espaço: com elas voltamos ao século XX e percorremos terras fluminenses, capixabas e mineiras, viajando sobre os trilhos do trem, no constante prenúncio das alegrias do palco e na certeza de que a vida do artista é sempre ir aonde o povo está.

Dejanira Pettersen, em 2015

Em seu tempo de menina, Dejanira morava em São João do Paraíso, distrito de Cambuci, sonhando com uma vida em que pudesse percorrer o mundo e conhecer pessoas. Quando Geraldo Silva, de nome artístico "Tangará", chegou à cidade, junto com um grande circo, a vida da jovem começou a tomar o rumo que ela quis construir. O circo vai embora, mas tempos depois, após uma grande enchente da qual se recorda muito bem, Geraldo retorna à cidade, preocupado com a jovem. O casal se declara apaixonado e para Dejanira começa a experiência dos palcos. Em breve, assume o nome artístico "Andorinha", e assim nasce a dupla "Tangará e Andorinha".

Anúncio de show em circo, com participação de Tangará - a lápis: dia 2 em Bananeiras.

CANTORIA NAS ONDAS SONORAS DO RÁDIO


Campos: Dejanira conta terem feito apresentações aos domingos, cantando músicas a pedido dos ouvintes, na Rádio Cultura de Campos.  


Itaperuna: Durante três anos, na década de 1950, Tangará esteve a frente do programa matutino diário "Sertão em Flor", na Rádio Itaperuna Ltda - ZYM-2. Dejanira recorda que antes de iniciar o programa, este era anunciado por José Luiz com a seguinte chamada: “- E vêm aí os inimigos da tristeza! Sertão em Flor”.


Para a estreia de Andorinha na rádio, Tangará compôs a música A saracura em que ela teria uma pequena participação, para ir se acostumando ao microfone:


A saracura

Tangará: Você já viu a saracura dançar?
Andorinha: Não!!!
Tangará: Então você vai ver, você vai rir de escangalhar...
                A saracura quando dança lá no galho
                vira festa
                que os galhos chegam a quebrar


Como era comum na época, diversos artistas eram chamados a compor material que auxiliasse na divulgação de nomes políticos, em campanhas eleitorais. Tangará não foi exceção e um dos candidatos para quem compôs foi o bonjesuense Roberto Silveira, na época candidato a governador. 




No período em que Dejanira e Geraldo viveram em Itaperuna, sua moradia foi no Hotel Meirelles, no andar térreo. Foi nesse local que o músico preparou um cenário que pudesse acompanhar a dupla em suas viagens pela região: pintou em tecido uma cidade imaginária com muitos prédios. O cenário, assim, cabia em uma mala, podendo ser facilmente transportado e montado a cada apresentação.


O TEATRO MAMBEMBE SEGUE OS TRILHOS DO TREM

Após deixar o programa na Rádio Itaperuna, o casal passa a se apresentar em várias localidades. Seguir o roteiro da dupla é perceber a importância das linhas ferroviárias como meio de transporte e de comunicação entre as cidades durante grande parte do século XX no interior brasileiro, em especial na confluência entre os estados do Rio, Minas e Espírito Santo. E assim, Dejanira vai indicando uma série de lugares em que "Tangará e Andorinha" percorreram com suas apresentações teatrais, tais como: Pirapetinga, Patrocínio do Muriaé, Muriaé, Leopoldina e Juiz de Fora (MG); Murundu, Santa Margarida, Chave do Paraíso, Gargaú, Travessão de Campos, Baixa Grande, Santo Amaro, Saturnino Braga, Tocos, Capão, Chave Santa Maria, Usina Santa Izabel (RJ); Iurú, Mimoso do Sul e Iconha (ES). Nessa lista é possível perceber o nome ou local de muitas das estações ferroviárias que compunham as linhas da época.

Onde se apresentar? O primeiro lugar a buscar era o cinema, se não houvesse cinema, buscava-se um clube, ou um local em que se pudesse fazer o show, montando o cenário "portátil". No local, apresentavam um "Carta de recomendação" assinada por pessoas que haviam recebido os artistas em suas cidades. Em alguns casos, como em Iurú, a apresentação ocorreu na própria estação ferroviária, no salão da estação, por não haver cinema ou clube que pudesse recebê-los. Também era comum receberem convite para apresentação em algumas fazendas, em áreas rurais mais afastadas.

Apresentação de Tangará e Andorinha em Iconha, década de 1960, tendo ao fundo o cenário composto por uma pintura em tecido feito por Tangará e que era transportado pelos artistas em uma mala de viagem. Acervo particular: Djanira Pettersen.

Uma carta de recomendação era importante para facilitar a recepção da dupla em novas localidades.

A HORA DA PARADA

Quando Geraldo Silva começou a ter problemas de saúde, não foi possível manter a vida itinerante e os tempos de apresentações terminaram. Dejanira arrumou trabalho em uma fazenda em Batelão da Barra, São Francisco do Itabapoana, onde o casal viveu por alguns anos, antes de se mudar para Bom Jesus do Itabapoana. Hoje, viúva, Dejanira continua vivendo seu tempo de artista nos palcos da memória, onde os aplausos não param. Sempre disposta a nos brindar com suas histórias, essa mulher, que nasceu para a vida artística, nos transporta a um mundo onde o real e o mágico se entrelaçam, e da terra surgem vozes distantes nos contando de um tempo e de um lugar que, afinal, nos trouxeram até aqui.

O SONHO NÃO PODE PARAR

A doença impossibilitou Tangará a continuar em seu contato com o povo em apresentações teatrais. Em uma carta ao radialista, locutor e cantor Gilberto Lima, Geraldo se descreve como "compositor, cantor, violonista e humorista da Velha Guarda" e acrescenta "há 52 anos que realizo shows pelos sertões do meu Brasil". Seu sonho era ter um disco gravado com suas composições, e para isso chegou a enviar cartas solicitando apoio a prefeitos, governador e presidente.

Alguns dos títulos de suas músicas: Exaltação a Petrópolis, Sabiá e João de Barro, Mandamentos das moças, Sapo dentro do saco, Batizado da bicharada, Futebol dos bichos, A mulher e o automóvel, É bonito isso, Flor de maracujá, Ladrão de passarinho, O homem e o cão, Boi amarelinho, Cobra surucucú, Rio Muriaé, Crime de Muriaé, Vida de casado, Cigana, O tatu tá no buraco, Mulher não, Gavião, O vento vai, Alegria de caboclo, Tão lindo não há, Pato e o Marreco, Bicho doido, Por causa do marreco, Vou pra lua, O vento vai, Como é bonito ver, O sapo e o saco, Siri jogando bola, Totó apaixonado (1957), Como é bonito ver (1960), Fiel companheira (1970), Tristeza (1976), Bebê de proveta (1979), Faniquito (1980).

É só mentira (Tangará do Sul)
Geraldo Silva nasceu em Petrópolis (1917)
e faleceu em Bom Jesus do Itabapoana (1984).
Acervo particular: Dejanira Pettersen.

Ah meu compadre
Essa eu vou contá pro povo
Eu vi lá na fazenda
Galo véio botá ovo

A lua tá cheia  (Tangará do Sul)

A lua agora não fica vazia
Tem gente lá
morando noite dia
Pra lua agora
a coisa ficou feia
vai ter que andar
só cheia


Texto: Paula Aparecida Martins Borges Bastos

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