terça-feira, 1 de novembro de 2016

A Liberdade é Azul: Cinema no ECLB



Estreou no dia 27/10, no ECLB, o I Ciclo de Exibições e Discussões Cineclube Debates - Espaço Cultural Luciano Bastos (I CEDCEC), com a apresentação do primeiro filme da Trilogia das Cores, de Krzvstof Kieslowski, "A Liberdade é Azul".

Após a exibição, o público presente compartilhou vivamente suas impressões e reflexões sobre o filme, permitindo a todos perceberem a riqueza e diversidade das abordagens que um clássico cinematográfico pode proporcionar. Aspectos filosóficos, históricos e comportamentais foram alguns dos temas destacados pelos participantes.

O debate foi mediado pelo professor de filosofia do IFFluminense, Rafael Tardin, que destacou no filme a possibilidade de "olhares sobre a liberdade e suas implicações em meio a vida humana". 

Confiram abaixo a íntegra do texto "Um olhar com cuidado sobre 'A Liberdade é Azul', de Kieslowski", de Rafael Tardin. 
                          





Um olhar com cuidado sobre "A Liberdade é Azul" de Kieslowski.

Rafael Tardin*

Enquanto proposta, o I Ciclo de Exibições e Discussões Cineclube Debates – Espaço Cultural busca promover um contato mais íntimo entre imagem e pensamento, cinema e reflexão, onde pessoas possam compartilhar de suas apreensões, ideias e emoções num ambiente livre e democrático.
O cinema então se apresenta como um pretexto para o encontro de olhares apurados sobre as entrelinhas da existência, no caso do primeiro filme exibido (“A Liberdade é Azul”) no I CEDCEC, olhares sobre a liberdade e suas implicações em meio a vida humana.

A premissa ou ponto de partida do filme é uma perda que implica à Julie uma liberdade forçada. Sem sua família, ela se vê desprovida de laços que, ao mesmo tempo que cativam sua existência, delimitam suas ações sempre numa direção de abandono de si em detrimento do compartilhamento do tempo livre com os mesmos. Ela se depara com um tempo livre que converge em tempo para si. Tempo esse de liberdade e, na mesma medida, de solidão. Nesse sentido, uma constatação emerge desse paradoxo: diante da perda há sempre um ganho. 

Não se trata de um ganho desejado, mas de um ganho imprevisível e incontrolável, que brota de dentro de cada evento ou fato compartilhado por nós em nossa existência, que parece efêmera e poderosa na película de Kieslowski. Desprovida do contato com seu marido e sua filha, Julie tem seus laços rompidos. Laços esses que sobrevivem em sua memória que teima em arrastá-la para uma dor profunda, prova de humanidade máxima, que é o sentimento de ausência. Perda essa irreparável, incontrolável, irreversível. Sua humanidade lhe trai. Diante da mesma, desaba e tenta acabar com o jogo. 

O fracasso de seu suicídio condiciona sua existência para uma situação além: incapaz de se matar, Julie (sobre)vive no embate constante de (re)significar sua relação com as pessoas, com a vida e com as coisas. Mesmo não procurando um novo sentido para sua existência, Julie se encontra a mercê da busca. Há como viver desprovido de qualquer laço?

Naquela condição, Julie percebe que as adversidades e os infortúnios da vida acabam ganhando tons irônicos. Em dias normais, ficar presa fora de sua casa ou apartamento numa noite fria poderia ser motivo de transtorno, raiva ou desespero. No entanto, após se deparar com o maior dos infortúnios, qualquer perda não impacta tanto assim. Cada nova adversidade é uma experiência inédita, pois é isso que ela constata no dia seguinte após sobreviver ao acidente: um novo dia, uma nova experiência. 

Não se trata de amar os infortúnios da vida, e sim de uma certa resiliência que de uma forma ou de outra é vida, é ganho. Até mesmo diante do infortúnio se ganha algo, pois não há como não ganhar: vida é transformação pura, nada se perde integralmente, tudo se transforma num fluxo de novos sentidos e significados.

A resiliência que se ganha é a tranquilidade do "deixar a vida bater (pelo menos naquele momento) pois não há o que fazer". Tranquilidade que é o render-se ao determinismo da vida sobre nós. Determinismo esse que se revela na falta de controle sobre as coisas que sempre nos escapam. Liberdade? Há liberdade diante das imensas possibilidades de eventos e fatos nos ocorrerem? Podemos controlar quando seremos felizes, tristes, ou quando coisas boas e ruins irão nos acontecer? Abdicar do controle sobre a vida é uma demonstração de resiliência que poucos conhecem. 

Quando abdicamos do controle nos libertamos do medo. Perdemos o medo da perda: o infortúnio não assusta tanto. A dor, as adversidades não nos machucam tanto. Nos tornamos resistentes à vida ao senti-la em sua máxima força nos momentos de perda. Quando algo nos é tirado, deparamos com o vazio natural que é ausência de sentido. 

A contribuição deixada para nós pelos eternos investigadores (filósofos) é que sempre estamos em busca de sentido. Não nos contentamos com sua ausência, pois é na presença de sentido que damos o passo inicial para construirmos as coisas que são importantes para nós.

Diante da perda há sempre um abalo, e nele um equívoco. Buscamos um parâmetro para o recomeço, que não é um novo início e sim continuidade. Lidar com os momentos de adversidade enquanto pontos de partida para novos ciclos é ignorar o seguinte fato: que faz parte de um mesmo ciclo os momentos de adversidade. Para a Filosofia, o sentido da crise não é a de apenas ruptura, mas sim de transição. Processo esse exemplificado na vida por meio do movimento incessante de destruição e construção de sentidos: estar vivo é se fazer presente na ausência de sentido, pois quando (se) tudo fizer (fizesse) sentido não haverá (haveria) mais necessidade de mover-se para além dele.

Não nos conformamos com aquilo que não tem sentido, logo que queremos sempre tornar seguro terrenos hostis que podem esconder os grandes mistérios da vida e do universo. Julie opta pelo desapego. Tenta, em vão, não construir laços, pois os vê como armadilhas, oportunidades para a dor entrar. Nesse processo, o desapego revela o valor material como mero detalhe. Revela que o valor da matéria não vem da matéria e sim de nós! O que se revela no desapego material não é a falsidade ou superficialidade que tais coisas representam e sim o processo pelo qual nós percebemos que o valor dado às mesmas vem de nós e não das coisas: uma laranja é fruta, mas para o garoto que anseia em jogar bola com os amiguinhos e não a tem (bola), laranja se torna bola. Afinal, o que é então a laranja? Fruta ou bola?

No desapego de Julie é possível perceber seu apego a certa esperança: a de que é possível viver sem ser triste. Novamente, não há como não ganhar nada. Em cada lágrima que derramamos ganhamos, na mesma medida, algo. Cabe a cada um de nós olhar com cuidado sobre as mesmas e lá, em algum lugar, encontrar aquilo que é só nosso. Um presente, um tesouro, um aprendizado. Mesmo que não se queira, há sempre um ganho na perda.

* Professor de Filosofia / Coordenador do Projeto de Extensão Cineclube Debates - Instituto Federal Fluminense




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