sexta-feira, 21 de agosto de 2020

Memórias do século XX: Elicio Freitas, de Campos a Bom Jesus


O Grilo

Pobre grilo que vive a cricrilar
Sob os raios luminosos da amplidão.
Nunca houve poeta a te exaltar,
Só tens por companheira a solidão.

A tua madrugada é o luar...
A estrela do céu teu lampião,
A luz do vagalume a perpassar...
É o rico abajur do teu florão.

Tu és um trapezista, um vagabundo;
Que vive a saltitar por este mundo.
Artista figurante do meu verso.

Flautim dos meus vergéis e matagais;
Cantos noturno dos meus madrigais...
Palhaço seresteiro do universo!

Quem foi Elicio Freitas Salles, aquele a quem jornais da região de Campos dos Goytacazes e Bom Jesus do Itabapoana, nas décadas de 1970 e 1980, se referiam como “aedo”, “vate campista”, “poeta popular”, “poeta maior do Vale do Itabapoana”, “homem simples do povo”, “poeta nato”, “modesto e talentoso poeta”?

Em seu discurso de posse como membro do Conselho Municipal de Cultura, na cidade de Bom Jesus do Itabapoana, em 1985, é o próprio Elicio quem nos conta um pouco de sua história:

[...] não sou acadêmico e não tenho nenhum curso superior, apenas tenho a quarta série primária, mas herdei dos meus antepassados uma cultura nata, pois eles foram jornalistas, escritores, pintores paisagistas, versificadores, destacando-se o Comendador Joaquim Prudêncio Bessa, meu bisavô materno, fundador da Imprensa Campista, que recebera diversas condecorações do Império Português pelos serviços prestados à terra Goitacá.

Joaquim Prudêncio Bessa, viera para o Brasil com 12 anos de idade, entrando para o comércio, trabalhando de dia e estudando à noite, formou-se em Advocacia, sendo Promotor da Comarca de Campos e de São João da Barra.

Quero também exaltar o solicitador Gustavo Aurelio Bessa, meu avô materno, com o curso de Bacharel em Direito, que fora também jornalista e prosador.

É por isso [...] que nasci poeta, ator e pesquisador dos grandes vultos da antiguidade.

Nascido em Campos, em 10 de novembro de 1915, Elicio Freitas passou a viver em Bom Jesus do Itabapoana na década de 1960, tendo recebido o título de cidadão bonjesuense durante a festa da cidade, em 15 de agosto de 1986. Sua relação afetiva com a terra natal e a terra que depois o acolheu influenciou fortemente seus escritos, recordações e poemas, cantando em versos suas paisagens, seus rios, suas histórias e lendas.

CAMPOS DOS GOYTACAZES

Seus pais, Basilio de Freitas Salles e Adalgisa Bessa Salles, foram criados e vividos no interior do município de Campos. Elicio Freitas, nessa cidade, estudou o primário no Grupo Escolar Visconde do Rio Branco, tendo depois trabalhado como tipógrafo no jornal "O Dia". Já morando em Bom Jesus, costumava visitar a cidade natal, fonte constante de inspiração. Nessas ocasiões, muitas vezes declamava poemas aos conhecidos em locais públicos.


Rio Paraíba

Igual um Rei já invencível em guerra
Nos campos de batalha um paladino.
Tu és também aqui da minha terra
Sansão do sul; um Rei, um palatino.

Tu se despenhas da frondosa serra
Tomando nos vergéis novo destino.
A procurar o mar tu se descerra...
Sob um sol dadivoso peregrino.

Tranquilo e manso em garrido estio
Tu passas murmurando horas a fio;
Entre os raios divinais da lua cheia.

Mas quando a tempestade se levanta!
E o grande dilúvio te suplanta;
Tu jogas tudo nos montões de areia.
                                                       
                                       (Campos, junho de 1976)

Também deixou interessantes registros de suas memórias de uma Campos das primeiras décadas do século XX:

LEMBRANÇAS DE MINHA TERRA

          O Guindaste

        Nas margens do Paraíba, próximo à rua do Braga existiu um guindaste pertencente à "INDUSTRIAL CAMPISTA" digamos nós, Fábrica de Tecidos.
       Vinham de lugares longínquos grandes canoas acossadas pelas marolas deste rio, trazendo lenha para abastecer a fábrica.
        Este guindaste com o seu corpo da forma de um tonel com poderosas alavancas, girava ora para a esquerda, ora para a direita, com um longo pescoço com um bico da ponta semelhante a um gancho, desciam quatro correntes com um gancho nas pontas, atracado com uma pequena grade arreando nas canoas.
        Os canoeiros o enchiam de lenha suspendendo-o e girando colocava em um trol que o levava para dentro da Fábrica de Tecidos.
        Eu ficava horas a fio a contemplar aquele movimento que enchiam de novidades de minhas ilusões infantis, cheia de fantasia.

     As Barriquinhas

    Era muito comum em Campos, os vendedores de sorvete batido a mão.
    Saborosos sorvetes de Abacaxi carregado com barriquinhas vendidos em casquinhas, essas barriquinhas os vendedores traziam na cabeça forrada com uma rodilha de pano.
    A cantarolar sob um sol (ilegível) esta cantiga:

"Quando eu passo nesta rua
Os cabelos me arrepia
As morenas vão dizendo
Sorveteiro de arrilia"

Sorve Iaiá... É de Abacaxi ... !"

    Eu trago nos meus ouvidos aquele timbre das vozes dos antigos vendedores de sorvete.
    Muitos que aqui existem saborearam aquela delícia que chamava Sorvete de Abacaxi batido a mão.


BOM JESUS DO ITABAPOANA

Durante muitos anos, Elicio Freitas trabalhou na Estação Rodoviária de Bom Jesus com comércio de livros, revistas e jornais, em um ambiente de letras perfeito para seu envolvimento com os versos, as leituras e as declamações. 

Veneração

Píndaro, Píndaro, inspira-me agora!
A louvar este hino a esta terra,
Quero cantar pelos rincões afora,
As belezas perenes que ela encerra.

Quero cantar os alcantis da serra,
Nos esplendores deste sol que doura.
As águas deste rio que descerra,
Entre os vergeis da perfumada aurora.

Píndaro, Píndaro, magistral poeta!
Ilumina-me agora nesta oferta,
Jorrando nos meus veros a tua luz.

Eu te venero, Píndaro e te respeito!
Guardando a tua lira no meu peito,
Para cantar um hino a Bom Jesus.


Verão Verde

    Chovera! As flores da primavera entardeceram por causa da longa estiagem que se fizera.
    Chegou o verão. As chuvas eram permanentes, enchendo os valões, avolumando os rios.
    As enegrecidas pedreiras se faziam chorosas como se fossem estátuas emudecidas, derramando lágrimas sobre as suas imaginárias vestes.
    Um desfile de flores amarelas enfeitava o tapete verdejante dos campos.
    Ao alto aglomeravam-se as nuvens, encobrindo o azul celeste do céu.
    O fugitivo sol rompendo as cortinas dos carroceis chuvosos, ia com seus raios dourar as bonecas dos tabuais.Os estandartes canavieiros faziam um virente festival pelas regiões açucareiras.
    As vegetações alegravam-se com os sedosos pendões dos capinzais.
    Chovia... As águas do Itabapoana deslizavam pelos floridos vergéis. O verde figurava por toda a ribeira; de distância viam-se velhos chalés marcando um passado já distante, quando corria o trenzinho partindo da Vila até a nossa cidade.
    Eu devaneando debruçado na janela do ônibus que me levava, fiquei com meus olhares embevecidos de poeta comovido com aquela vastidão verdejante...
    E foi assim que eu vi um "verão verde" - por todo o Vale do Itabapoana em que o sol aparecia por entre as cortinas dos carroceis chuvosos para dourar as bonecas dos tabuais.
(publicado no jornal "O Norte Fluminense")


"Serei Homero?" - Elicio fazia a entrega diária de jornais em diversas localidades, percorrendo vários quilômetros no trajeto de Bom Jesus a Campos. Nessa caminhada o pensamento voava em constante reflexão e inspiração, tendo publicado em jornais suas sensações e memórias desses momentos, como em sua bela crônica "Serei Homero?", publicada em 1981, no jornal O Norte Fluminense e já comentada nesse blog http://espacoculturallucianobastos.blogspot.com/2014/09/elicio-freitas-um-poeta-popular-serei.html ).


APRESENTAÇÕES, DECLAMAÇÕES E DESFILES

Elicio Freitas era exímio declamador e encarnava seus personagens com afinco, sendo constantemente convidado a participar de diversas festividades na região, como as festas de fim de ano da extinta Tipografia Almeida e os eventos realizados pelo Colégio Rio Branco, a quem dedicou um soneto pela passagem de seu 53° aniversário, em 1973:

Sempre Rio Branco

Templo de sábios, abrigo sobranceiro,
Salão de Arte, Partenon de glória.
Com teu plantel docente alvissareiro,
Marcas um passado nos anais da História.

Sempre Rio Branco, sempre altaneiro,
Cantam em teu nome hosanas de vitória.
Do ensino desta terra és pioneiro,
Colhendo louros em toda trajetória.

Eu desejo que a tua Primavera,
Seja florida igual a outra era
Enfeitando de arrebois teu pavilhão.

Herdaste de Aristóteles a grande luz,
Derramando o saber em Bom Jesus,
Tu és o Partenon deste torrão!





O UNIVERSO DO CORDEL

Elicio também fez incursões pela literatura de cordel, utilizando geralmente temas da região:

- "A história do rola-pau contada por Mãe Dolores", publicada pela Divisão de Folclore da Secretaria de Patrimônio Cultural do Rio de Janeiro, em 1977, narra uma história envolvendo personagens conhecidos de Bom Jesus (veja mais em:  http://espacoculturallucianobastos.blogspot.com/2014/09/a-historia-do-rola-pau-contada-por-mae.html )

- "Curunkango, o rei dos escravos (uma história de Macaé)"

- "Mota Coqueiro (o martírio de um fazendeiro)"; 

- "Mundo Cão"


Lendo, hoje, os versos e crônicas de Elicio Freitas somos transportados... Transportados para um tempo de verdes paisagens, com matas e rios inspiradores que, traduzidos aos olhos do poeta nos fazem viajar no tempo e sonhar, quem sabe, com o futuro que podemos ainda construir ...


Visite outras publicações sobre Elicio Freitas nesse blog:

Elicio Freitas, um poeta popular: "Serei Homero"?http://espacoculturallucianobastos.blogspot.com/2014/09/elicio-freitas-um-poeta-popular-serei.html 

"A história do rola-pau contada por Mãe Dolores", de Elicio Freitas:
http://espacoculturallucianobastos.blogspot.com/2014/09/a-historia-do-rola-pau-contada-por-mae.html

Veja também em outras mídias:

Resgate de Elicio Freitas: http://onortefluminense.blogspot.com/2017/05/resgate-do-poeta-elicio-de-freitas.html


Fonte de pesquisa: Álbum de Elicio Freitas, contendo fotografias, recortes de jornais, poemas, literatura de cordel e textos de Elicio Freitas Salles. Acervo: Espaço Cultural Luciano Bastos.

Pesquisa e texto: Paula Borges Bastos


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Atualizado em: 28/08/2020




2 comentários:

  1. Lindos poemas, doces lembranças.👏👏👏👏👏👏👏👏

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  2. Belo resgate da obra de um grande poeta! Sempre fui um admirador das obras do poeta Elicio de Freitas. Parabéns, Paula, pelo texto magistral! 👏👏👏👏👏👏

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